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Mar Salgado aponta os blogues como a continuação natural das partidas de futebol: uma pessoa parte para aqueles depois de abandonadas estas. Comigo, embora com uns vinte anos de intervalo, sucedeu exactamente assim. Donde, para efeitos de balanço e contas, acho que devo a essa fase ultrapassada da minha existência uma evocação a preceito. Aqui vem ela.
Ao longo da vida, uma pessoa pode mudar tudo: crença, partido, nacionalidade, nome, até o sexo (salvo seja). Não pode mudar de clube. Um clube não se escolhe - pertence-se de modo tresloucado e inato e irracional, sem qualquer motivo lógico que sustente essa pertença. Desejemos ou não, não há motivo, e não me venham com o argumento da 'nossa terra'. E se a 'nossa terra' tiver mais de um clube? E se formos de Lisboa? Somos do Benfica, do Sporting, do Belenenses, do Atlético, do Casa Pia ou do Oriental? Quem decide?
Ninguém decide. Vá lá saber-se porquê, há alguma coisa que acontece na cabeça de um fedelho de chupeta e que o leva a 'ser', por exemplo, do Oriental, ainda que o pai do fedelho morra de desgosto, que o Oriental tenha descido à sétima divisão em 1934 e que o seu maior craque actual receba uma pensão por deficiência motora. É assim, e quando assim é não há força que poupe o fedelho a um futuro previsivelmente melancólico.
Veja-se, por favor, o meu caso. 'Sou' do Benfica e do Leça. Por que carga de água? Tenho familiares 'leceiros', nunca tive familiares do Benfica, nasci em Matosinhos, vivi em Matosinhos, gosto de Matosinhos, gostei de Lisboa, não gosto de Lisboa, vivo praticamente em Leça da Palmeira e não perco grande tempo em Leça da Palmeira. É uma cegada, uma confusão da qual apenas se retira um facto: 'sou' do Benfica e do Leça, e quero que ambos ganhem sempre e estou sempre a dizer mal de ambos e não vejo as partidas de ambos já que ambos jogam sempre pouco e ganham sempre pouco para aquilo que eu queria que jogassem e ganhassem.
Mas a questão é: e o Leixões? É da minha terra? É sim senhor. É o meu clube? Não é, não senhor. Querem que minta? Não sou político e, a menos que uma coisinha ruim me roube as faculdades mentais ou me acrescente seis zeros à conta bancária, espero não vir a sê-lo. No entanto, devo informar a opinião pública que o Leixões Sport Club é a única instituição que beneficiou do talento do extremo-direito mais injustamente esquecido da história do futebol.
Refiro-me, sem falsas modéstias, a este vosso criado, que aí por volta de 1981 encheu o campo de treinos do Mar com a magia dos seus dribles sibilinos e o efeito letal dos seus cruzamentos sobrenaturais. Pela visão de jogo, chamavam-me o 'Médium-Ala'. Pela velocidade, alcunharam-me de 'Ala que se faz tarde'.
Quem descobriu o meu génio foi Óscar Marques, lendário treinador dos petizes, e o pormenor de eu ser sobrinho dele em nada toldou a sua perspicácia. No Leixões, realizei meia dúzia de treinos, momentos únicos que nenhuma câmara registou para a posteridade, mas que as testemunhas presentes à época recordam hoje com uma lágrima marota e pingo no nariz. Aos meus pais, o tio Óscar, perdão, o Mister, foi categórico: 'O Toninho joga com muita elegância!' Na altura, houve quem interpretasse isto como um reparo, mas eu percebi logo que o Mister percebeu que eu percebi que eu era grande demais para o Leixões. E que não poderia segurar-me.
A alternativa, a curto prazo, era sair para um 'grande', tipo Barcelona ou Gatões, mas a minha gratidão ultrapassava largamente a ambição e a cobiça. Jogador que se preze veste uma camisola na carreira e não a tira nem para tomar banho. Trocas, não eram e não são comigo. Consciente do dilema, anunciei ao mundo a minha retirada, no auge e com a seguinte proclamação (que estranhamente não foi inscrita em nehuma placa comemorativa): 'Para que o Leixões não me perca, perde-me o futebol!'
Indiferente ao drama que se gerou, com vagas de fundo, romarias e velinhas a N. S de Fátima, a partir daí dediquei-me ao ténis de mesa, a título individual e esporádico. Mas, fiel a rígidos princípios, jurei não voltar a integrar, oficialmente, outra equipa que não o LSC.
Fiquei adepto? Disse e repito: não se muda, não fiquei. Permaneci 'benfiquista' e 'leceiro', na qualidade de ocasional espectador de sofá. Mas, enquanto desportista praticante, o símbolo das raquetes cruzadas mantém-se, naturalmente suado e sujo, colado ao meu coração.
Um coração que evoca e agradece sentido os aplausos dos dois ou três monos anónimos que, sentados numa pilha de tijolos, contemplaram, há duas décadas, a arte e a técnica deste que se assina,
Alberto Gonçalves (o 'Toninho')