quinta-feira, novembro 04, 2004

Direitos Humanos: modo de usar*

A principal polémica na Holanda, onde passei a semana, está ligada a uns cortes orçamentais na segurança social. Foi isto que me disseram, pelo menos, e foi isto que motivou no sábado, em Amesterdão, o maior protesto local dos últimos dez anos e, de longe, o maior em que já me vi envolvido. Pela minha parte, note-se, apenas protestei, e em surdina, contra a manifestação em si. Mais do que questionar o Governo, os apitos e os berros de duzentas mil pessoas demolem por completo o sossego alheio e as férias dos incautos.
Fora isso, a segunda polémica holandesa do momento é, desde a respectiva transmissão televisiva em 29 de Agosto, uma curta-metragem escrita por uma deputada do Parlamento nacional. A senhora chama-se Ayaan Hirsi Ali, é somali de nascimento e foi criada sob os preceitos do Islão. O filme chama-se "Submission" (Submissão) e, como o nome indica, trata das mulheres criadas (e casadas) sob os preceitos do Islão.
Ao que a senhora Ali insinua, esta pode não ser uma experiência agradável, dado que com frequência envolve matrimónios forçados, espancamentos e a ocasional castração. As reacções não demoraram, e várias associações muçulmanas da Holanda acusaram a deputada de não compreender a “complexidade” (?) da violência conjugal e de retratar o islamismo como uma cultura retrógrada (!).
Enquanto a sra. Ali resolveu rodear-se de segurança permanente, algumas associações não muçulmanas de “direitos humanos” também se insurgiram. Naturalmente, insurgiram-se ao lado dos putativos espancadores: para Steven Huismans, director de um bando do género, a sra. Ali tem sido insultuosa e “demasiado provocadora”.
Pois tem. Os activistas dos “direitos humanos” farejam os excessos do Ocidente com canina aplicação. Quando o assunto são os outros, os activistas revelam-se de uma tolerância comovedora: os nossos excessos são as ligeiras idiossincracias dos povos exóticos. Vantagens do multiculturalismo. Se um holandês (ou um português) "assediar" a telefonista no escritório, isso constitui uma inominável violência; se um marroquino convencer à chicotada a noiva de onze anos a obedecer-lhe na cama, estamos perante uma "tradição", que não apenas deve ser respeitada como enaltecida na sua milenar pureza.
Talvez este pudor explique que, durante boa parte do “caso” Hirsi Ali, diversas activistas holandesas preferissem flutuar ao largo de Aveiro, tentando resgatar as mulheres lusitanas de um martírio sem fim. E que, mesmo agora, eu não tivesse vislumbrado o “barco do aborto” em nenhum dos canais de Amesterdão, reconvertido ao auxílio de muçulmanas, grávidas ou não.
É possível que, hoje, as donzelas do barco prefiram empenhar-se na reeducação de holandesas preconceituosas, como a anónima que colocou o seguinte anúncio no “Amsterdam Weekly” de 29 de Setembro: “Senhora, 24 a., procura cavalheiro carinhoso para relacionamento sério. Deve ter menos de 40 anos e, de preferência, não ser egípcio, saudita ou turco.” Que vergonha! A menina anónima influencia-se por ninharias e, de caminho, arrisca-se a desbaratar oportunidades únicas. A julgar pelo que se vê na Al-Jazira, há por aí certos sauditas ou egípcios que fazem muitos homens perder a cabeça. Imagine-se o que não farão a uma mulher.

*Este texto foi publicado na Sábado de 8 de Outubro último. Faltou dizer que Submission foi realizado por Theo Van Gogh. Mais se acrescenta que Theo Van Gogh foi assassinado anteontem, em Amesterdão. O assassino, ou activista, se preferirem, é um cidadão marroquino e muçulmano. Só para que não digam que são sempre os mesmos.