"Conto de Páscoa
Um programador construiu um dia um belo site na Internet, um enorme mosaico, com milhões de azulejos hexagonais de cores vivas e brilhantes. Mas fê-lo de forma curiosa. Usando métodos complexos de Teoria dos Jogos, Gestão de Informação e Modelos de Complexidade, programou os hexágonos para se irem juntando a outros, de acordo com as respectivas cores. Era como se fossem as próprias peças a escolher a quem se unir.
Cada ladrilho surgia no centro da página inicial e movia-se para as margens. Nascia, não em hexágono, mas como um círculo. Nessa forma redonda ele mal era capaz de se relacionar, pois tocava os próximos apenas num único ponto, em tangência. Mas com esses sucessivos encontros, os círculos iam alisando as faces, evoluindo para hexágonos à medida que se aproximavam das bordas da página. Quando lá chegavam, não só tinham adquirido a forma desejada, mas estavam unidos em lindos cachos de ladrilhos, na diversidade cromática que a sua escolha ditara.
Logo que cada conjunto de hexágonos tocava na margem da página inicial, o autor do site tomava-o e transportava-o para a segunda página, onde construía o mosaico. Era sempre um desafio emocionante ver como o arranjo único de cor e brilho de cada cacho se podia encaixar, mantendo a sua identidade própria, enquanto se integrava no desenho global. O site era uma combinação genial de arte e ciência, individualidade e relação.
Um dia, porém, entrou um vírus no site. Nunca se sabe bem como estas coisas acontecem, mas a programação foi perturbada. Os azulejos afectados pelo vírus deixaram de pensar nos outros e centraram-se só em si. Em vez de procurarem formar o cacho mais original, começaram a contestar a relação e até a própria evolução para hexágono. Alguns decidiram manter a forma de círculos, que diziam ser a natural. Enrijaram a sua face externa e isolaram-se, mal tocando nos demais. Outros evoluíram para monótonos quadriculados e outros, ainda, escolheram formas mirabolantes.
Com isto, perderam de vista o seu propósito último. Vários ladrilhos passaram até a duvidar da existência do programador, dizendo que ao tocar na margem se desaparecia para sempre. Naturalmente que esses ladrilhos, recusando a forma de hexágonos, não podiam ser encaixados no mosaico. Por maior boa vontade que houvesse no autor, e por mais belas que fossem as cores e conjuntos, eles não conseguiam ser integrados no grande projecto do site. Assim, o programador foi forçado a criar uma nova página para onde transportava essas peças corrompidas e onde elas vagueavam soltas e sem sentido. Dado que o vírus fazia perder cada vez mais ladrilhos, o programador decidiu tristemente desistir e começar de novo. Mas depois pensou numa solução mais arrojada: ele iria redimir os azulejos.
Fez então nascer um novo ladrilho, uma peça que surgiu, não como círculo, mas logo na forma definitiva. Era um belo hexágono, branco, imaculado. A surpresa na página foi enorme. Mas aumentou mais quando dele se viu surgir um outro hexágono, muito maior. Era um enorme azulejo que tinha, não uma só cor, mas a fotografia colorida do programador. Deste modo, o próprio autor integrou-se e participou no site.
Esse grande hexágono, a Imagem, tinha a propriedade de transformar logo em hexágonos todos os ladrilhos que nele tocassem, qualquer que fosse a sua forma anterior. E concedia essa mesma capacidade transformadora a todos os que se lhe uniam. Como as suas faces eram grandes, isso permitia que dois ladrilhos lhe tocassem em cada uma. Os primeiros que o fizeram ficaram conhecidos como "os Doze". À sua volta foi-se formando um grande cacho, e a ordem foi sendo restaurada na página.
No entanto, os ladrilhos infectados irritaram-se. Diziam que a Imagem lhes tirava a liberdade e tomava o lugar de programador. Decidiram expulsá-la. Como não lhe podiam tocar, pois seriam transformados à sua imagem, subornaram um dos Doze e, através dele, conseguiram empurrar a Imagem contra a borda da página. Ao tocar lá, ela desapareceu como um ladrilho normal. Os conspiradores rejubilaram. Mas por pouco tempo.
Três dias depois, a Imagem reapareceu, mais bela e brilhante que nunca. Era o primeiro ladrilho que regressava à página inicial. E o seu regresso rompeu a margem. O grande mosaico passou então a ser visível e acessível a todos os ladrilhos que passassem através do regressado. E toda a página viu que o grande desenho em formação no mosaico era a Imagem."
- João César das Neves